A primeira vez que a palavra artista me chamou atenção foi na aula de artesanato que fui matriculada aos 10 anos, da inesquecível Tia Vera. Ela era uma senhora formidável que rapidamente se tornava ídola de todos os seus alunos, era impossível não amar uma criatura que sabia fazer tantas coisas e tinha um jeito doce ensinar. A turma era mista, desde uma menina de 10 passando por adolescentes até uma senhora de 80. Tudo acontecia ao mesmo tempo em uma sala e varanda da sua casa: a cada semana éramos apresentados à diferentes técnicas e possibilidades artísticas, de acordo com a pauta que a própria Tia Vera organizava e de acordo com o ritmo de evolução de cada aluno. Lembro de aprender a fazer vela de parafina, pompons para montar um cachorrinho Poddle de lã, cesto de corda para fazer um enfeite de Natal com pinhas, pinturas com betume em castiçais de gesso e até bombom com recheio de côco (o melhor que já provei na minha vida até hoje) – esse foi o tema de uma das “aulas especiais” como ela mesma chamada. Aula especial era a licença poética da Tia Vera para ensinar o que ela quisesse complementando nosso leque de habilidades novas. Foi com ela que conheci a técnica de óleo sobre tela, o meu maior sonho de menina era poder pintar uma tela! Tenho a minha primeira telinha guardada até hoje. Frequentei durante alguns anos em todas as tardes de segunda-feira, de uma às cinco, aquele era um dos momentos mais esperados da minha semana. Sempre fui muuuito tímida com pitadas de bicho do mato e falar em começar uma aula nova era algo que me trazia um frio na barriga desconcertante. Descobrir “o mundo Tia Vera” e o que me esperava ao subir aquela longa escada de uma das casas da Rui Barbosa mudou a minha vida. Foi a primeira vez que conheci uma artista de perto. Todos os materiais ficavam em uma prateleira enorme de ferro num dos cantos da sala que eu ficava babando desejando “zerá-la”, também tinha um piano que era mais uma de suas habilidades, as mesas eram todas juntas e amontoadinhas de modo que a gente ficava bem perto do outro colega, acompanhava seus processos, pedia ajuda, dava risadas, mas sem desconcentrar, xiiiiiu. Eu amava quando ela fazia xiiiiiiuuuu, pra tentar conter algumas gritarias dos adoles que rolavam vez ou outra. Amava especialmente porque eu sempre preferia o silêncio concentrada só treinando o que ela me ensinou, sem auê. Continuo igual. Não me esqueço da sensação de quando ela chegava na minha mesa, pois sim ela calmamente parava ao lado de cada aluno ao longo da tarde pra acompanhar, tirar dúvida, amparar. Como eu gostava de quando chegava a minha vez de ver os olhos dela pousados sobre a minha “arte do dia”. Sim eu queria ser notada, admito. (risos) E ela gostava muito de mim e eu dela. Essa foi a primeira vez que eu senti que ali era meu lugar, que existia um planeta além matérias da escola que poderia preencher a minha existência. No glossário da minha infância o que eu senti foi: acho que eu posso ser artista também um dia, igual a tia Vera. Ela foi a minha primeira inspiração.
Ontem eu lancei a minha nova série de pinturas e fiz uma live espontânea como adoro fazer em dias de novidades, e durante a live recebi a pergunta “quem são suas inspirações”. Respondi o que penso, gentilmente. Hoje tomei coragem e vou confessar algo pra você: sempre me senti estranha respondendo essa pergunta e ironicamente essa é a pergunta que eu mais respondi em toda a minha trajetória empreendedora. Digo isso porque acredito desde sempre que minhas maiores inspirações estão no meu contexto de vida, nas pessoas que cruzam meu caminho, em quem eu sou e nas coisas que chamam minha atenção – e isso vai mudando continuamente. Tão simples. Mas parece que a gente não deixa parecer simples: há alguns anos o “artista digital” é tão cobrado para exibir sua lista de referências, de materiais, de qual seu fornecedor de onde aprendeu aquilo, e quais livros leu, quais perfis de instagram de artistas você indicaria – que dizer que me inspiro no meu modo de viver e nas minhas histórias, parece ser esconder algo. Na minha vida muita coisa me inspira e fazer curso com pessoas que admiro é uma das minhas ferramentas mágicas (rs), mas meu convite aqui é: nem que alguém passe a sua lista completa de referências significa que tais coisas vão atravessar você e seu trabalho como atravessou o de alguém. Por isso eu acredito tanto que é pra dentro que a gente tem que olhar, é um caminho solitário mesmo, silencioso e íntimo. Tenho certezas que houveram outras “Tias Veras” na vida de muitas pessoas que hoje trabalham com arte e porventura podem ter esquecido do valor que isso teve lá trás. E se você curte o trabalho de alguém: faça um curso com ela, ouça o que ela tem a dizer além rede social, essa seria uma dica prática.
Eu não sei ao certo quantos anos a Tia Vera tinha na época que fui sua aluna, arrisco dizer que uns 68, havia algo no olhar dela e numa força feminina que ela exalava que se conectava diretamente com o tipo de mulher que eu também queria ser um dia. Na verdade já até achava que era porque eu era bem abusadinha (risos). Ela me parecia doce e ao mesmo tempo forte, e livre, e acolhedora, e divertida, e misteriosa, e criativa e aberta ao que pudesse chegar. Eu a achava tão moderna, tão diferente das senhoras que eu conhecia… Mais do que dar o Google nas refs de pessoas aleatoriamente tente olhar quem são as pessoas que fizeram a diferença na sua história, como elas eram, como se expressavam, o que elas faziam que chamava profunda atenção. Quais as pessoas que te ensinaram alguma coisa que você carrega até hoje. Sua história é um acervo riquíssimo, acredita ele.
Obrigada por eu ter descoberto isso aos 10 nas suas aulas, de onde a senhora estiver sei que me escuta. Obrigada a todos os seres que apoiam outros artistas, aos que incentivam suas crianças e aos que entendem a importância de fazermos as pazes com os artistas que também desejamos ser na vida adulta. Arte é fôlego e eu preciso dela nesse instante. Com todo meu amor, Amanda.